terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Bilinguismo é tudo de bom!

Quando escolhemos dar à Laura uma educação bilíngue, tínhamos uma vaga ideia dos benefícios do bilinguismo para a criança. Para nós, tinha a ver principalmente com a vantagem de falar uma segunda língua bem próximo do falante nativo. Mal sabíamos que essa escolha traria tantas surpresas interessantes.

Bilinguismo é muito mais que aprender ou saber uma nova língua. Alguma coisa, não se sabe bem o quê, ocorre na cabeça do indivíduo bilíngue, dando-lhe uma nova perspectiva de mundo. Eu não iria tão longe quanto este artigo do New York Times, que afirma que os bilíngues são mais inteligentes que os monolíngues, pois inteligência não é algo fácil de definir ou de medir (que o diga os paradoxos do Efeito Flynn, em que o QI das pessoas não deveria variar de geração a geração, mas está aumentando consistentemente). Mas não existem mais dúvidas, como tratarei a seguir, de que o bilinguismo traz uma série de benefícios cognitivos para o indivíduo, afetando vários aspectos relacionados ao que se conhece de inteligência.

Quando falo de bilinguismo, estou utilizando uma definição que é bastante citada em trabalhos científicos: bilíngue é o indivíduo que utiliza dois ou mais idiomas em suas atividades diárias, também como instrumento de aprendizado. Ou seja, a princípio não se incluiriam aí os frequentadores de cursinhos de línguas ou coisa parecida, pois nem sempre levam ao bilinguismo, segundo François Grosjean em Bilingual Life and Reality  (nesses cursinhos, a segunda língua é geralmente um fim em si, e não utilizada como instrumento de aprendizado: não se tem aula de matemática, por exemplo, no outro idioma).

Deve haver exceções, mas o bilinguismo está mais relacionado com famílias bilíngues e escolas bilíngues, em que ambos os idiomas são utilizados como instrumento, diariamente. É também o caso de famílias de imigrantes. Claro, há sempre a possibilidade de a pessoa se tornar bilíngue mais tarde, na tradicional "aulinha de inglês", mas é muito mais difícil. Basta olhar em volta e ver o grande número de pessoas que estuda inglês durante anos a fio, sem se tornar bilíngue e ainda esquecendo boa parte do que estudou após um tempo. Esse "me engana que eu gosto" ocorre porque, nas escolas de inglês em geral, o objetivo é o aprendizado da língua em si, não o seu uso como meio para outros temas. Novamente digo que há exceções, mas não é fácil achá-las.


Muita gente, quando fala de bilinguismo, tem um monte de ideias pré estabelecidas, sem fundamentação. Os tipos de besteira que se lê e se ouve por aí são, por exemplo:

  • Aprender um segundo idioma desde cedo é prejudicial ao desenvolvimento da linguagem da criança;
  • Bilíngues têm problema de personalidade por estarem divididos entre duas línguas;
  • Bilíngues jamais conseguirão fluência completa na língua materna devido à influência da segunda língua;
  • Uma língua atrapalha a outra e o bilinguismo gera confusão mental;
  • É maldade expor um bebê, por exemplo, a outro idioma;
  • Se os pais não forem nativos do outro idioma, a criança aprenderá errado ou não aprenderá;
  • Bilinguismo é um modismo bobo que vai passar logo;
  • Etc...
Esses preconceitos muitas vezes são pura inocência de quem não conhece as dimensões do bilinguismo.  Para se ter uma ideia, há hoje cerca de seis mil línguas no mundo e entre 50% e 75% da população mundial é bilíngue!!! Será que a maioria da população mundial tem confusão mental, problemas de personalidade ou atraso linguístico? Será que países bilíngues, como o Canadá, promoveriam o bilinguismo como política de governo se fosse prejudicial às crianças? De fato, alguns dos mais importantes pesquisadores dos efeitos cognitivos do bilinguismo são canadenses, como a psicóloga Ellen Bialystok, da universidade de York, em Toronto.

A verdade é que as crianças são incríveis para aprender idiomas. Alguns estudiosos, como Noam Chomsky, chegam a dizer que possuem uma área no cérebro desenvolvida especificamente para aquisição da linguagem (tal área iria desaparecendo com a idade, por não ser mais necessária na idade adulta, motivo pelo qual somos tão incompetentes para aprender línguas depois de velhos). Outros, como Terrence Deacon,consideram que são extremamente bem adaptadas a adquirir a linguagem em interações sociais. Elas aprendem o idioma materno mesmo sem que os pais deem feedback sobre seu progresso. De fato, há povos que nem conversam com as crianças até que elas sejam capazes de manter uma conversação, segundo Steven Pinker. Logo, não seriam os pais, nem ninguém, que "ensinam" deliberadamente a criança a falar!

Normalmente nós subestimamos a capacidade até de bebês em "absorver" a linguagem. Este artigo da BBC, por exemplo, trata de estudos que concluem que bebês de apenas sete meses já conseguem identificar diferenças nas estruturas gramaticais de idiomas distintos ao crescerem em ambientes bilíngues. 

Sobre essa capacidade impressionante das crianças, Steven Pinker cita, de forma bem interessante, que:


(...) a criança de três anos de idade é um gênio da gramática - domina a maioria das construções, obedece regras com mais frequência do que as quebra, respeita os princípios universais da linguagem, comete erros de forma sensata, como um adulto os cometeria, e evita completamente a maioria dos erros. Como consegue isso? Crianças dessa idade são notavelmente incompetentes na maioria das outras atividades (...)

Ou seja, mesmo antes de ser capaz de fechar um botão de roupa, usar uma colher, ou mesmo fazer xixi no local adequado, a criança já consegue a façanha de entender e falar um ou mais idiomas, respeitando as regras gramaticais sem nem pensar no assunto, tarefa extremamente complexa para um adulto. Expor a criança à linguagem, qualquer que seja, é tão natural como dar oportunidades a ela de aprender a andar. Ninguém diria, obviamente, que aprender a andar seja prejudicial a uma criança!!!

Quanto a outros supostos problemas que o bilinguismo traria, de fato há trabalhos científicos mais antigos, do início do século XX, que concluíam ser o bilinguismo prejudicial em diversos aspectos. Entretanto, é um consenso hoje em dia na comunidade acadêmica que esses primeiros trabalhos possuíam muitas falhas metodológicas, quando não preconceitos subjacentes, com resultados pouco científicos e de bases muito frágeis. O ponto de inflexão nesta direção foi o trabalho de Peal e Lambert, de 1962, que demonstrou a fragilidade das pesquisas anteriores.

O consenso mais atual das pesquisas acadêmicas é que o bilinguismo promove um espectro de habilidades que vão muito além da capacidade de utilizar uma segunda língua. A quantidade de material que corrobora com essa visão positiva sobre o bilinguismo é muito vasta. A seguir, listo alguns dos benefícios mais estudados. Esses achados estão todos embasados em pesquisas que foram exploradas em minha monografia: Efeitos do Bilinguismo no Desenvolvimento Cognitivo.


Em resumo, quando comparados em testes de avaliação de linguagem e cognição, os bilíngues possuem as seguintes vantagens em relação aos monolíngues:

  • Menor tempo de resposta em tarefas que exigem resolução de conflitos e atenção seletiva. Por exemplo, suponha um teste em que aparece uma palavra representando uma cor. Ao mesmo tempo, as letras da palavra possuem uma outra cor (ex: verde - azul - vermelho). O conflito estaria em selecionar corretamente a palavra e não a cor, ou vice-versa (ex: selecione a palavra "azul" e não a que tem a cor azul). Os bilíngues conseguiriam realizar esse tipo de tarefa mais rapidamente que os monolíngues. Um exemplo é a Tarefa de Simon.
  • Desenvolvimento precoce de um conhecimento sobre a própria natureza da linguagem (ou "consciência metalinguística"), auxiliando no desenvolvimento da comunicação. Por exemplo, noção intuitiva precoce de que a relação entre uma palavra e um objeto é mera convenção. Isso faz com que crianças bilíngues tenham mais habilidade em tarefas que exigem dar "rótulos" a objetos. Em um teste, foi pedido a crianças bilíngues e monolíngues que fingissem que a palavra "tartaruga" na verdade significa "avião". Enquanto os bilíngues consideraram correta a frase "a tartaruga está voando", os monolíngues mostraram mais confusão com a arbitrariedade do rótulo "tartaruga". Crianças bilíngues desenvolveriam esse aspecto cognitivo mais cedo.

  • Maior eficiência no uso da língua como instrumento do pensar. Algumas pesquisas indicam até que os bilíngues duplamente fluentes escolhem a língua "mais adequada" para pensar, dependendo do tipo de problema a ser resolvido, facilitando sua resolução.

  • Proteção contra a degradação, com a idade, de determinadas funções mentais. Vários trabalhos mostram que idosos bilíngues possuem menor perda cognitiva do que a verificada em monolíngues de mesma idade.
  • Facilidade em compreender as convicções de terceiros. Também conhecida com "Teoria da Mente", seria uma espécie de "empatia", que facilita a um indivíduo se colocar no lugar de outra pessoa e entender que ela tem seu próprio ponto de vista, seu modelo mental do mundo. Essa capacidade pode ser ilustrada pela frase "Eu sei que você sabe que ele sabe". Os bilíngues desenvolveriam uma teoria da mente mais cedo.
  • Vantagens no desenvolvimento do autocontrole, auxiliando no sucesso escolar. Ao que parece, os bilíngues treinam autocontrole o tempo todo ao ter que selecionar o idioma em que vão se expressar e inibir o outro idioma. Isso favoreceria esse autocontrole em outras situações, como na disciplina, por exemplo.

  • Transferência de conhecimento entre as línguas. O que se aprende em uma língua pode ser transferido para outra. Isso dá uma certa plasticidade ao aprendizado, pois determinados assuntos podem ser melhor explorados em um idioma que em outro. Por exemplo, pode ser mais fácil iniciar a alfabetização em um idioma que em outro, pelas próprias características dos idiomas. Ao mesmo tempo, determinadas informações podem ter sido mais amplamente tratadas em um idioma que o outro, como acontece no caso da vasta literatura científica em inglês, favorecendo o indivíduo que saiba inglês, neste caso.

  • Maior facilidade no letramento. As diversas vantagens envolvendo o desenvolvimento da linguagem parecem influenciar positivamente a alfabetização e o letramento dos bilíngues. Isso pode estar relacionado à compreensão precoce do que seja a linguagem humana.

  • Maior facilidade em aprender novas palavras.
  • Maior facilidade em trabalhar com palavras de significado próximo.
  • Melhor gerenciamento das habilidades cognitivas em geral. Isso relaciona-se ao que se chama de "função executiva", que os bilíngues parecem possuir melhor desenvolvida. Influencia positivamente na capacidade de planejamento e execução de tarefas, julgamento e autocontrole.
  • Maior habilidade em escolher as variáveis corretas para a solução de um problema.
  • Maior habilidade em acolher simultaneamente duas possíveis interpretações para um mesmo estímulo.
Esses efeitos aparecem mais cedo nas crianças bilíngues e permanecem por toda a vida. Pode haver um atraso no desenvolvimento da primeira língua quando se inicia o desenvolvimento da segunda, mas é pequeno e não duradouro.

Encontrei ao menos um trabalho que concluiu que os bilíngues podem ter um vocabulário menor que o dos monolíngues quando comparados na mesma língua. Também parece que os bilíngues possuem maior frequência do fenômeno de "ponta da língua", ou seja, saber a resposta mas não ser capaz de dizer. E também parecem ter menor velocidade de acesso lexical: demoram mais para escolher a palavra mais apropriada para dizer. Aparentemente (e ironicamente) o bilinguismo daria aos bilíngues uma série de benefícios cognitivos não relacionados à linguagem, mas ao custo de algumas desvantagens relacionadas à linguagem.

Entretanto, é preciso entender que o universo linguístico dos bilíngues é maior que o dos monolíngues. Dessa forma, não faz sentido comparar bilíngues e monolíngues com foco só na língua comum entre os dois, pois isso implica descartar metade do conhecimento dos bilíngues. Também é preciso ter em mente que os bilíngues não utilizam as duas línguas em tempo integral, obviamente. Precisam utilizar uma ou outra, ao contrário dos monolíngues. Supondo, por exemplo, que um bilíngue utilize português e inglês 50% do tempo para cada, ele estaria "treinando" o português só metade do tempo, enquanto um monolíngue o faria 100% do tempo. Logo, seria até de se esperar que os monolíngues levassem muito mais vantagens no português neste caso. Mas mesmo assim, a vantagem que as pesquisas encontram é muito pequena.

De qualquer forma, a conclusão acaba sendo que as vantagens em ser bilíngue superam em muito as desvantagens. Mas é preciso entender que as comparações não são absolutas e há um grande número de variáveis envolvidas que podem influenciar no resultado. As pesquisas atuais tentam isolar muitas dessas variáveis, mas nem sempre isso é possível. Também não é fácil saber como diversas dessas vantagens cognitivas se materializam nas situações reais, pois foram identificadas em testes, muitas vezes em situações totalmente artificiais em ambiente controlado.

Entretanto, uma vantagem concreta, com repercussões importantes, seria a maior facilidade dos bilíngues no letramento e maior chance de sucesso escolar. Só isso já seria suficiente para eu querer criar minha filha em um ambiente bilíngue!



No caso do bilinguismo em inglês, uma enorme vantagem que percebemos é a quantidade absurda de material pedagógico de alta qualidade naquela língua, principalmente quando se compara com a anêmica disponibilidade de material em português, muitas vezes importado e pessimamente traduzido. Além disso, exceto para assuntos muito específicos do Brasil, a maioria dos temas, principalmente acadêmicos, possuem literatura muito mais ampla em inglês, dando uma vantagem inegável a estudantes que dominam essa língua. Sem falar em outras possibilidades abertas pelo bilinguismo, como estudar, morar ou trabalhar no exterior. Mas isso fica para um outro post...




7 comentários:

  1. Bom dia.

    Sou pai da Bárbara Mendes e tenho um site de estudos para concursos e de outras funcionalidade.

    Querendo pode inserir este artigo em meu site.

    Veja o tutorial de como inserir artigos no site.

    http://www.busca1.com.br/?page_id=33

    Att.,

    Nivaldo>

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    1. Oi Nivaldo,

      Obrigado pela dica! Vou dar uma olhada.

      Abraço,
      Douglas

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  2. Muito legal o texto. A longo prazo veremos muito mais benefícios. A Mariana já está lá e o Daniel vai também. :)
    Abs,
    Elenilde

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  3. Muito legais suas observações, principalmente nos últimos parágrafos... vivemos o bilinquismo em nosso dia a dia e até hoje não vi desvantagem alguma... só os benefícios na vida escolar, acadêmica e profissional já são motivos mais que suficientes para eu não desistir... obrigada por compartilhar tantos dados interessantes!

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    1. Obrigado pelo comentário!

      A única "desvantagem" que dá pra perceber quanto ao bilinguismo é a crítica, às vezes velada, de pessoas que acham que bilinguismo é exibicionismo, elitismo, etc. Na verdade, já foi considerado motivo de discriminação, pois se associava o bilinguismo a baixo nível social e até uma suposta "inferioridade racial", devido às levas de imigrantes procurando melhores condições de vida nos EUA, entre os séculos XIX e XX. Ou seja, as ideias preconcebidas podem mudar com o tempo, mas sempre estarão presentes!

      Um abraço,
      Douglas

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  4. Ando preocupada.. penso em Inglês e quando preciso me expressar em portugues não acho a palavra ideal. Isso acontece tbém com o Inglês.. No final das contas não falo bem nem uma nem outra lingua.. Acho que estou com a tal confusão de linguas citadas acima :( Help pls??

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  5. Excelente texto, Douglas!
    Vou colocar meu filho (1 ano e meio) agora numa instituição bilíngue pensando exatamente nos pontos por você mencionados.

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